16 Março 2021
O fato de que a Igreja teme as mulheres e, mesmo assim, quer controlá-las e silenciá-las é até óbvio. Menos óbvia é a resistência que continua ao longo dos séculos, a teimosia com que se repropõe a transgressão de uma religiosidade e de um carisma femininos.
A opinião é de Ritanna Armeni, jornalista, apresentadora de TV e feminista italiana, em artigo publicado no caderno Donne Mondo Chiesa, do jornal L’Osservatore Romano, de março de 2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Lá está a bruxa! Aí vem a bruxa! À morte! À fogueira! Preparem o fogo! Acendam a fogueira! Chegou a bruxa!”
Era isso que gritavam pelas ruas, das casas e das varandas os habitantes de Zardino, no belo romance de Sebastiano Vassalli “La chimera”, na chegada da carruagem com a jovem que seria queimada na fogueira, em um dia qualquer do século XVII, e Antonia é uma jovem qualquer, que tem a única culpa de ser bela e inteligente, e de enviar, na sua vida bastante simples, sinais de um inconformismo indesejável. Basta isso para que o pároco e os habitantes do vilarejo a definam como bruxa e a façam arder no fogo.
Quantos Antonias existiram ao longo da história? Quantas mulheres foram definidas como bruxas e sofreram uma morte atroz? Na literatura, encontram-se muitas delas. Histórias dramáticas e chocantes são contadas por Vassalli, Manzoni, Eco, Sciascia (as primeiras que vêm à mente desta que escreve).
Muitas também no cinema. Lembram-se da bruxa do maravilhoso “Dies Irae”, de Theodor Dreyer? As bruxas fazem parte do imaginário, da história e muitas vezes voltam também da crônica.
Recentemente, a diocese católica de Eichstatt, na Baviera, pediu desculpas pela caça a mulheres inocentes que ocorreu na Alemanha entre os séculos XV e XVIII. Acusadas de conspiração com o diabo, foram atingidas 25.000 pessoas, em sua maioria mulheres. “Uma ferida sangrenta na história da nossa Igreja”, disse o bispo Gregor Maria Hanke.
Os estudos mais recentes do Vaticano, porém, apresentam hoje outros números e outros julgamentos. A comissão histórico-teológica instituída para o Jubileu, cujos resultados foram divulgados em 2004, desmascarou com dados em mãos a “lenda negra” que envolveu durante séculos a Inquisição, o tribunal eclesiástico desejado por Paulo III. Apenas quatro anos antes, por ocasião do Jubileu, João Paulo II havia pedido solenemente perdão pelos pecados cometidos pela Igreja, mas os especialistas, que enquanto isso estavam trabalhando, divulgaram que os dados sobre a operação da Inquisição não eram aqueles em que se acreditava, que a caça às bruxas não tinha os números que haviam sido difundidos durante séculos.
É verdade que, naqueles anos, houve dezenas de milhares de processos, mas apenas 1,8% se concluíram com a fogueira. Os recursos à tortura não foram tão frequentes. Um exemplo: dos 125.000 processos da Inquisição espanhola, apenas 59 acabaram com a condenação à fogueira. A Inquisição portuguesa queimou quatro pessoas, e a italiana, 36. No total, as fogueiras não ultrapassaram uma centena.
O objeto dos temores da Igreja, portanto não eram – como se acreditou durante séculos – as feiticeiras, as fornecedoras de poções mágicas, as adoradoras de Satanás, as protagonistas dos sabás ou, como é provável, as mulheres especialistas em ervas e medicamentes que exerciam a medicina popular, as parteiras. Não eram elas, as mulheres, de quem a Igreja tinha medo entre os séculos XVI e XVIII.
E então? A luta contra as bruxas, as fogueiras, a violência contra mulheres inocentes – que existiu e certamente foi cruenta – ocorreram, mas principalmente na Idade Média, e não nos séculos seguintes, os da Inquisição, que foram objeto de estudo da comissão vaticana. E, sobre a Idade Média, a documentação é escassa. Ou talvez os dados ainda não foram suficientemente estudados.
De todos os modos, são menos claros do que os dos séculos seguintes e que revelam outros medos, outras lutas, outras discriminações.
Assim aconteceu que, no momento em que uma cortina se fechou contando uma verdade diferente sobre a Inquisição, outro telão se levantou, mostrando uma cena ainda mais surpreendente e contando uma história ainda mais trágica e mais interessante. Alejandro Cifres, diretor do arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé, que, em junho de 2014, sediou uma jornada de estudos sobre a Inquisição e as mulheres, descreve com palavras claras o novo cenário.
“Na Idade Moderna, isto é, do século XVI ao século XVIII – diz –, as bruxas e as fogueiras foram episódios isolados e periféricos. Naquela época, as preocupações da Igreja eram bem diferentes.”
E outras eram as mulheres das quais a Igreja tinha temor e reprimia. A Inquisição era um órgão “racionalista, cauto, moderado”. Bem distante, portanto, da imagem que foi transmitida dela ao longo dos séculos, e não estava preocupada com poucas figuras femininas marginais, mas sim “com a reforma protestante que se espalhava pela Europa, conquistando grandes países”. Ela estava engajada, portanto, principalmente na luta contra a heresia. E estava atenta e preocupada em conter o fenômeno da santidade afetada, das místicas, o poder dos mosteiros, a liberdade de expressão amplamente exercida pelas mulheres que beirava a heresia e podia ultrapassar a heresia.
O tribunal eclesiástico, portanto, se engajou não contra ingênuas plebeias especialistas em ervas ou com um mau caráter, mas sim “contra o carisma feminino que influenciava fortemente a sociedade, a Igreja e a política”.
O gênio feminino – reconhecido alguns séculos depois por João Paulo II – se desenvolvia naqueles séculos de forma imprevista, a Inquisição estava desconfiada, investigava, condenava e, acima de tudo, submetia-o a um controle férreo.
“Eu não usaria a palavra ‘medo’ - diz Cifres – mas sim ‘prepotência’. A Igreja, naqueles anos, pensava que controlava tudo, tinha uma excessiva confiança em si mesma e desconfiava de quem tinha poder. As mulheres tinham o poder, os conventos o exerciam, as freiras eram muitas e eram protagonistas. Por isso, deviam ser contidas.”
O medo das mulheres – ou a prepotência da Igreja em relação a elas – no início da Idade Moderna foi amplo e sério. O cenário daqueles séculos está povoado de protagonistas pouco conhecidas que só há alguns anos se começou a descobrir e a estudar.
Do tribunal eclesiástico, foram postas sob acusação sobretudo as “santas fingidas, as mulheres portadoras de profecias e de novos valores – confirma Gabriella Zarri, historiadora, autora da pesquisa “Le sante vive” –, mulheres que gozavam de prestígio religioso e político, consideradas capazes de eventos milagrosos e com grande seguimento popular”. Nós as reencontramos, contadas com cuidado e atenção, no texto “Donne e Inquisizione”, volume editado por Marina Caffiero e Alessia Lirosi.
E são tão numerosas, têm uma mentalidade tão flexível e elástica, até a transgressão aberta e repetida, que, escreve Marina Caffiero, “os arquivos da repressão são também aqueles que testemunham a liberdade. A força, mais do que a fraqueza das mulheres”.
Perdemo-nos nas centenas de histórias, biografias, narrativas. Mas o quadro geral é delineado com suficiente clareza. Quem são, portanto, os seres femininos que a Inquisição quer controlar e reprimir? No século XVI, as santas vivas ou as “bem-aventuradas do príncipe” ou as santas da corte que, no centro-norte da Itália, por meio do seu carisma, dão prestígio a quem reina. Por isso, elas intervêm com força na esfera política e determinam as decisões do poder.
A Contrarreforma as varre do mapa, o modelo das hierarquias eclesiásticas não admite carisma e profecia, conjuga-os com a natural fraqueza das mulheres, olha-os com desconfiança e, sobretudo, controla as mulheres nos claustros, onde a religiosidade feminina e a sua transgressão está submetida às regras rígidas exercidas pelos confessores. Que querem controlar tudo, mas não conseguem.
Por exemplo, não conseguem supervisionar a escrita na qual – conta Marina Caffiero – permanece forte a aspiração ao prestígio e ao poder, além de um modelo de santidade totalmente feminino que, até no século XVII, consegue encontrar o caminho para se impor.
“O espírito profético transborda dos muros dos claustros”, explica a historiadora, e as visionárias e as profetisas continuam se afirmando “como figuras da veneração local, da peregrinação popular, de devoção até mesmo por parte de religiosos”. Assim, ganham mais uma vez autoridade e poder. Histórias ainda desconhecidas e fascinantes, de nobres e de plebeias que propõem a sua própria ideia de santidade, que afirmam dons proféticos e poderes carismáticos.
O fato de que a Igreja as teme e, mesmo assim, quer controlá-las e silenciá-las, o fato de que elas, quando a heresia de Lutero se espalha, podem ser consideradas perigosas para a hierarquia e usurpadoras do sagrado masculino é até óbvio. Menos óbvia é a resistência que continua ao longo dos séculos, a teimosia com que se repropõe a transgressão de uma religiosidade e de um carisma femininos.
“No fim do século XVII, o profetismo – é sempre Marina Caffiero que afirma – é o caminho obrigatório da expressão religiosa das mulheres, dada a exclusão do sacerdócio e da palavra pública e oficial.”
Ele resiste também ao século das Luzes, ao racionalismo do século XVIII que põe em cena no palco – no qual se desenrola há séculos a luta entre carisma e hierarquia – novas protagonistas. São as convulsionárias, as mulheres que, por meio da linguagem do corpo, mais uma vez querem influenciar nas escolhas e pretendem orientar vida e valores. São elas que tentam frear o recuo da Igreja perante a modernidade.
Mas nem por isso a suspeita em relação a elas se atenua. Mesmo atacada por uma modernidade que quer marginalizá-la, a Igreja continua tendo medo das mulheres. Que, no século XVIII e depois também no século XIX, continuam sendo “bruxas”, isto é, subversivas reais ou potenciais de uma ordem que não as contempla. E que, embora não sejam levadas à fogueira, são mantidas à margem.
Precisamente à luz da história e das histórias, é natural se perguntar: quanto desse medo permanece ainda hoje? Quanto ele ainda determina comportamentos e decisões?
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Depois e além das bruxas. Artigo de Ritanna Armeni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU